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Resolução de Conflitos: O Aikido na Prática

Por Terry Dobson


Terry Dobson
Morihei Ueshiba e Terry Dobson em Iwama (1962)

O trem atravessava sacolejando os subúrbios de Tóquio numa tarde de primavera. Nosso vagão estava comparativamente vazio: apenas algumas donas de casa com seus filhos e uns velhos indo fazer compras. Eu olhava distraído pela janela a monotonia das casas sempre iguais e das sebes cobertas de poeira.


Chegando a uma estação, as portas se abriram e, de repente, a quietude da tarde foi rompida por um homem que entrou cambaleando no nosso vagão, gritando com violência imprecações incompreensíveis. Era um homem forte, encorpado, com roupas de operário. Estava bêbado e imundo. Aos berros, esbofeteou uma mulher que carregava um bebezinho. A força do tapa fez com que ela fosse cair no colo de um casal idoso. Só por um milagre nada aconteceu ao bebê.


Aterrorizado, o casal deu um pulo e fugiu correndo para a outra extremidade do vagão. O operário tentou ainda dar um pontapé na velha, mas errou a mira e ela conseguiu escapar. Isso o deixou em tal estado de fúria que agarrou a haste de metal no meio do vagão e tentou arrancá-la do balaústre. Pude ver que uma das suas mãos estava ferida e sangrava. O trem seguiu em frente, com os passageiros paralisados de medo. Eu me levantei.


Na época, cerca de vinte anos atrás, eu era jovem e estava em excelente forma física. Vinha treinando oito horas de Aikidô quase todos os dias há quase três anos. Gostava de lutar corpo a corpo e me considerava bom de briga. O problema é que minhas habilidades marciais nunca haviam sido testadas em um combate de verdade. Nós, alunos de Aikido somos proibidos de lutar.


"Aikido", - meu mestre não cansava de repetir, "é a arte da reconciliação. Aquele cuja mente deseja brigar perdeu o elo com o Universo. Se tentarem dominar as pessoas, estarão derrotados de antemão. Nós estudamos como resolver conflitos, não como iniciá-los."


Eu ouvia essas palavras e me esforçava. Chegava a atravessar a rua para evitar os arruaceiros, os pungas dos videogames que costumam vadiar perto das estações de trem. Ficava exaltado com minha própria tolerância e me considerava um valentão reverente, piedoso mesmo. No fundo do coração, porém, desejava uma oportunidade absolutamente legítima em que pudesse salvar os inocentes destruindo os culpados.


- Chegou o dia! - pensei comigo mesmo enquanto me levantava. Há pessoas correndo perigo e se eu não fizer alguma coisa é bem possível que elas acabem se ferindo.


Quando me viu levantando, o bêbado percebeu a chance de canalizar a sua ira.


- Ah! - rugiu ele. ­ Um estrangeiro! Você está precisando de uma lição em boas maneiras japonesas!


Eu estava de pé, segurando de leve nas alças presas ao teto do vagão, e lancei-lhe um olhar de nojo e desprezo. Pretendia acabar com a sua raça, mas precisava esperar que ele me agredisse primeiro. Queria que ficasse com raiva, por isso curvei os lábios e mandei-lhe um beijo insolente.


- Agora chega! ­ gritou ele. ­ Você vai levar uma lição. ­ E se preparou para me atacar.


Mas uma fração de segundo antes que ele pudesse se mexer, alguém deu um berro:


- Ei!


Foi um grito estridente, mas lembro-me que tinha um estranho timbre, jubiloso e cadenciado, como quando estamos procurando alguma coisa junto com um amigo e ele subitamente a encontra: "Ei!"


Virei para a esquerda, o bêbado para a direita. Nós dois olhamos para um velhinho japonês que estava sentado em um dos bancos. Esse minúsculo senhor devia ter bem mais de setenta anos, e vestia um quimono impecável. Não me deu a menor atenção, mas sorriu com alegria para o operário, como se tivesse um importantíssimo e delicioso segredo para lhe contar.


- Venha aqui ­ disse o velhinho num tom coloquial e amistoso. ­ Vem aqui conversar comigo ­ insistiu, chamando-o com um aceno de mão.


O homenzarrão obedeceu, mas postou os pés beligerantemente diante dele e gritou por cima do barulho das rodas nos trilhos:


- Por que diabos vou conversar com você?


Ele agora estava de costas para mim. Se o seu cotovelo se movesse um milímetro que fosse eu o esmagaria. Mas o velhinho continuou sorrindo para o operário.


- O que você andou bebendo? ­ perguntou com os olhos brilhando de interesse.


- Saquê ­ rosnou de volta o operário ­ e não é da sua conta! ­ completou, lançando perdigotos no rosto do velho.


- Que ótimo ­ retrucou o velho. ­ Excelente mesmo. Eu também adoro saquê! Todas as noites, eu e minha esposa aquecemos uma garrafinha de saquê e vamos até o jardim nos sentar num velho banco de madeira. Ficamos olhando o pôr-do-sol e vendo como vai indo o nosso caquizeiro. Foi meu bisavô quem plantou essa árvore, e estávamos preocupados achando que ela não fosse se recuperar das tempestades de gelo do último inverno. Mas a nossa arvorezinha saiu-se melhor do que esperávamos, ainda mais se considerarmos a má qualidade do solo. É gratificante olhar para ela quando levamos uma garrafinha de saquê para apreciar o final da tarde, mesmo quando chove!


E olhava para o operário, seus olhos reluzentes. O rosto do operário, que se esforçava para acompanhar a conversa do velhinho, foi se abrandando e seus punhos pouco a pouco relaxando.


- É, é bom. Eu também gosto de caqui... ­ mas sua voz acabou num sumiço.


- São deliciosos ­ concordou o velho sorrindo. ­ E tenho certeza de que você também tem uma ótima esposa.


- Não ­ retrucou o operário. ­ Minha esposa morreu.


Suavemente, acompanhando o balanço do trem, aquele homenzarrão começou a chorar.


- Eu não tenho esposa, eu não tenho casa, eu não tenho emprego. Eu só tenho vergonha de mim mesmo.


Lágrimas escorriam pelo seu rosto; um frêmito de desespero percorreu-lhe o corpo.


Chegara a minha vez. Lá estava eu, com toda a minha imaculada inocência juvenil, com toda a minha vontade de tornar o mundo um lugar melhor para se viver, sentindo-me de repente mais sujo do que ele.


O trem chegou à minha estação. Enquanto as portas se abriam, ouvi o velho dizer solidariamente:


- Minha nossa, que desgraça. Sente-se aqui comigo e me diga o que houve.


Voltei-me para dar uma última olhada. O operário escarrapachara-se no banco, a cabeça no colo do velhinho, que afagava com ternura seus cabelos emaranhados e sebosos.


Enquanto o trem se afastava, sentei-me num banco da estação. O que eu pretendera resolver pela força fora alcançado com algumas palavras meigas. Eu acabara de presenciar o Aikido num combate de verdade, e a sua essência era o Amor. A partir de agora teria que praticar a arte com um espírito totalmente diferente. Muito tempo passaria antes que eu voltasse a falar sobre a resolução de conflitos.


Terry Dobson, o autor e protagonista desta história, foi um dos poucos ocidentais que foram uchi-deshi e aluno direto do fundador do Aikido, Morihei Ueshiba.


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